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Daniel Caneppele, na Fazenda Águas de Chapecó, em Nova Mutum (Foto: Rogerio Albuquerque)

 

Araras, emas e um casal de mutuns, aves ameaçadas de extinção, são testemunhas da colheita de milho, que avança noite adentro na Fazenda Águas de Chapecó, em Nova Mutum, na região do médio-norte de Mato Grosso, aproveitando as horas mais frescas.

A propriedade, comprada na década de 1970 por Isidoro Caneppele, dono de um moinho de trigo em Chapecó (SC), para que os filhos produzissem arroz de sequeiro e criassem gado, fica no epicentro da região que mais recebe investimentos bilionários de usinas de etanol de milho, atividade que voa em céu de brigadeiro no Estado e garante novo sabor ao cereal dourado.

A Águas de Chapecó se beneficia duas vezes de sua posição estratégica: vende parte do milho para a produção do etanol em uma usina da região e compra o DDG (distillers dried grain, ou grãos de destilaria secos), um subproduto do etanol que conquistou o status de coproduto, para alimentar o gado em confinamento. Mais barato que o farelo de soja, o DDG, que tem 32% de proteínas, se torna mais vantajoso na terminação dos bois na entressafra da lavoura.

Lucildo, um dos filhos do patriarca Isidoro, que chegou a Nova Mutum em 1979 e hoje administra a propriedade de 1.800 hectares de lavoura e 300 de pecuária junto com o sobrinho Daniel, diz que a diferença de custo entre o farelo de soja e o DDG chega a R$ 700 por tonelada. Há quatro anos, compraram a primeira carga de 50 toneladas. Neste ano, já adquiriram 300 toneladas. “Hoje, as usinas já não conseguem atender à demanda por DDG. Tem escala para comprar o produto.”

Engenheiro agrônomo, Daniel afirma que a família passou a investir mais em milho no mesmo ano em que passou a usar o DDG. “Antes, o milho nem era visto como receita. A gente vendia o saco na feira em Cuiabá. Hoje, com a saca cotada a R$ 20, a conta já fecha e ampliamos o plantio para 100% de nossa área agrícola.”

Animal se alimenta de ração com DDG (Foto: Rogerio Albuquerque)

 

 

Cerca de 60% do milho da fazenda é vendido para tradings. Parte é enviada para a Usina Libra, na vizinha São José do Rio Claro, que fabrica etanol de milho desde 2015. “Acredito que, com o início da operação no próximo ano de duas grandes usinas que estão em construção em Nova Mutum, mais milho vai ficar por aqui”, aposta Daniel.

Ele diz que a matemática do grão se tornou mais vantajosa com a chegada das usinas e o uso de sementes mais precoces na safra principal de soja. “Abriu uma boa janela para o plantio de milho. Com isso, elevamos os investimentos em fertilizantes e bons híbridos e a produtividade vem crescendo ano a ano.” No ano passado, ele colheu 133 sacas por hectare; nesta safra, já passou para 135 sacas. “Não é mais safrinha, agora já é safrona.”

A armazenagem do milho, afirma Daniel, é um gargalo na região, que só tem capacidade para estocar metade do que produz. Na fazenda dos Caneppele, há dois silos e um armazém com capacidade para 120 mil sacas. Outro problema é o risco de incêndios durante a colheita, especialmente nos horários mais quentes. Por isso, a gestão da colheita considera a direção do vento e as colheitadeiras são acompanhadas de perto por caminhão-pipa e grade.

Segundo Lucildo, 70% da receita da fazenda vem da lavoura e 30% da pecuária. Atualmente, a renda do milho representa quase a metade da soja. A propriedade emprega 13 pessoas. O paranaense Edson José Nahim é um deles. Há três anos em Mato Grosso, ele trabalha como aplicador de defensivo. Na colheita do milho, dirige o caminhão-pipa. Após trabalhar 23 anos com produção de leite na Região Sul, ele acompanha a ascensão do milho em Mato Grosso e comemora o fato de agora ter férias todos os anos. O sonho de Edson é juntar uma renda para voltar a ser produtor rural, desta vez de hortifrútis. 

Lucildo Caneppele, da Fazenda Águas de Chapecó (Foto: Rogerio Albuquerque)

 

A 50 quilômetros da propriedade dos Caneppele fica a Fazenda Mutum, onde a colheita de milho é feita em dois turnos de oito horas. A área, de 20.800 hectares e mais 10 mil de reserva ambiental, pertencia ao fundador da cidade, José Aparecido Ribeiro. Foi arrendada para o cultivo de soja, milho, algodão e braquiária pelo grupo O+ (lê-se “O Positivo”) Participações, do empresário Otaviano Pivetta, atual vice-governador do Estado. “Nossa lavoura foi montada em áreas abandonadas ou degradadas que necessitavam de correção de solo”, diz Leandro Fernandes Ferreira, gerente técnico do Ideal Agro, ramo agrícola do O+, que tem mais três unidades de plantio de grãos no Estado e no Piauí.

A área cultivada de milho quase triplicou em três anos, chegando a 18 mil hectares. O grão vira ração para as 17.500 matrizes de suínos e, a partir do próximo ano, vai virar também matéria-prima da Usina Ethanol SA que o grupo está construindo em Nova Mutum, em parceria com a paraguaia Inpasa. “Mesmo com produtividade e área plantada de milho crescentes a cada ano, não vamos conseguir produzir 100% do que nossa usina vai demandar”, afirma Leandro. No ano passado, cada hectare rendeu 100 sacas. Nesta safra, passou para 115 sacas.

Emilio Cesar Blanco Teles, diretor de operações do grupo, diz que o milho está valorizado na região graças ao preço da commodity neste ano e deve continuar a ser uma boa opção agrícola por causa do aumento de investimento das usinas de etanol. Segundo ele, o custo de produção gira em torno de R$ 1.800 por hectare e a rentabilidade alcança R$ 350 por hectare.

Para os sócios André Ricardo Sabará e Marcos Aurélio Ioris, a renda do milho hoje é quase maior que a da soja. A dupla arrendou em Nova Mutum a Fazenda Água Limpa, de 3.500 hectares, onde começou a plantar 1.300 hectares de milho, há três anos. Nesta safra, está colhendo 2 mil hectares do grão, com uma produtividade de 123 sacas por hectare. “O milho hoje é a melhor receita para quem é arrendatário. Está rendendo de R$ 600 a R$ 800 no final”, afirma André.

 

A maior parte da produção – 60% – já foi vendida para a usina em obras da O+. O valor negociado é até R$ 1 a mais por saca na comparação com o preço pago pelas tradings. “Acreditamos que, com o aumento de indústrias de etanol no Estado, o mercado do milho vai ficar mais estável. O produtor não vai sofrer tanto com as oscilações de preço do grão, que já variaram de R$ 15 a R$ 30 no Estado”, afirma André. Na próxima safra, se a janela da soja compensar, o plano dos sócios é aumentar a área de milho para 2.500 hectares.

Eles dizem que, com a entrada em vigor neste ano do Fethab (Fundo Estadual de Transporte e Habitação), o produtor ganha mais se negociar o milho em Mato Grosso, já que o novo tributo incide no envio do grão para outros Estados ou países. “Em alguns anos, as usinas devem comprar 70% do milho produzido na região. Vai sobrar pouco para exportação”, prevê o agrônomo Marcos Aurélio Ioris Junior, administrador da Água Limpa.

O produtor Gilberto Heberhardt, de Lucas do Rio Verde, concorda. Ele já destina quase metade da produção para a FS Bioenergia, inaugurada na cidade há dois anos. Gilberto conta que, neste ano, o preço da saca subiu de R$ 19 para R$ 23. “Faço contratos antecipados com a usina com valor até R$ 2 acima do preço de exportação.”

Neste ano, Mato Grosso, maior produtor nacional, deve colher 31 milhões de toneladas de milho. Cerca de 3,5 milhões vão para produção de etanol, DDG e óleo de milho. O número representa mais que o dobro do total processado nas usinas no ano passado. Segundo Ricardo Tomczyk, presidente da Unem (União Nacional do Etanol de Milho), o grão começou a entrar na produção de etanol há seis anos, quando a Usimat, instalada em Campos de Júlio, passou a moer também o milho, se tornando “flex”.

O investimento das usinas atende à demanda crescente por etanol, principalmente o hidratado, após a regularização do preço da gasolina. Moer milho em Mato Grosso para fazer combustível é vantajoso devido ao grande volume disponível a preço baixo e à dificuldade logística de escoamento do grão. Uma tonelada rende cerca de 400 litros de etanol e 380 quilos de DDG, receita extra com demanda crescente nos confinamentos de gado.

Usina de etanol e milho da FS Bioenergia, em Lucas do Rio Verde (Foto: Rogerio Albuquerque)

 

 

A primeira indústria no formato “full” (só milho) foi a Safras, inaugurada em Sorriso há dois anos, com produção de 5 mil litros por dia e ampliação neste ano para 120 mil. Mas o primeiro investimento que turbinou o mercado foi o da FS Bioenergia, uma joint venture do grupo brasileiro Tapajós com a empresa americana Summit Agricultural Group, em Lucas do Rio Verde. A usina entrou em operação em agosto de 2017, produzindo 530 milhões de litros por ano e capacidade de dobrar o número. Pode ainda produzir 340 mil toneladas de farelo de milho e cogerar 120 mil MWh de energia.

Outras duas indústrias flex estão em operação no Estado, totalizando cinco. O modelo se expande também para outros Estados. Goiás tem três usinas e Paraná e São Paulo, uma.

Até o fim de 2020, Mato Grosso deve ganhar mais seis full. Uma unidade da paraguaia Inpasa, maior produtora de etanol de milho da América Latina, já está testando os equipamentos e começa a operar em breve em Sinop (MT), com capacidade de produzir 530 mil litros por ano. As outras em construção são: FS Bioenergia e Ethanol Bioenergia, ambas em Nova Mutum; FS Bioenergia, em Sorriso; Etamil Bioenergia, no município de Campo Novo do Parecis; e Alcooad, em Nova Marilândia. Outras seis full estão planejadas. As grandes têm investimento de R$ 700 milhões a R$ 1 bilhão e as menores, de R$ 200 milhões a R$ 300 milhões.

No ano passado, as cinco unidades de Mato Grosso produziram cerca de 600 milhões de litros de etanol proveniente do milho. No total, o país fabricou 800 milhões de litros. Para este ano, a previsão nacional é chegar a 1,4 bilhão de litros, com processamento de 3,4 milhões de toneladas de milho. “Em três ou quatro anos, devemos chegar a 4 bilhões de litros e, em dez anos, a 8 bilhões”, afirma Ricardo.

 

Para o presidente da Unem, os investimentos vão garantir uma estabilidade inédita de preços do milho ao produtor, devido à demanda constante pelo grão. Ele acredita que todas as usinas de cana do Estado devem passar a ser flex num futuro próximo. Diferentemente das usinas sucroalcooleiras, que moem apenas no período da safra, a indústria do combustível de milho pode operar o ano todo, já que o grão é estocável. Esse combustível, no entanto, ainda representa apenas 4,62% do total produzido de etanol no país.

“Além do preço do milho, as usinas impactam a reprodução florestal, pela necessidade de biomassa, impactam a produtividade de carne, pela produção de DDG, produzem óleo de milho para ração animal e biodiesel, geram energia excedente, que pode ser adicionada à rede, e garantem muitos empregos em sua construção e operação”, diz Ricardo Tomczyk.

O gargalo, segundo ele, está na logística para tirar o etanol de Mato Grosso e levar para os Estados do Norte e Nordeste, que ainda importavam o combustível dos Estados Unidos na safra passada. Segundo a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), o país importou 1,73 bilhão de litros de etanol norte-americano. Já há, no entanto, vários estudos para resolver o problema logístico, incluindo a construção de terminal e transporte por cabotagem.

Ramiro Azambuja, diretor-presidente do grupo O+, diz que a usina do conglomerado, em parceria com a multinacional paraguaia Inpasa em Nova Mutum, deve começar a operar no segundo semestre de 2020, com capacidade inicial de produzir 800 mil litros de etanol por ano e 180 mil toneladas de DDG. Na segunda fase, a capacidade dobra. O investimento total chega a R$ 1 bilhão. A matriz energética será a braquiária plantada pelo grupo em áreas de lavoura e pasto degradado.

“Vamos usar o milho produzido nas fazendas da Ideal Agro e também comprar dos produtores da região, já que nossa política é não ser dono de toda a cadeia. Como temos a suinocultura de cadeia fechada e genética própria, que vai demandar 70% do nosso DDG na primeira fase, o etanol para nós será quase um subproduto.”

 

O executivo diz que o plano do grupo para o milho passa pela alta agregação de valor. A conta é esta: 1 tonelada de milho vale R$ 366; transformada em etanol, passa a valer R$ 1.110; usada na alimentação animal, chega a R$ 1.830, uma valorização de 400%. De acordo com ele, a produção de milho no Estado pode crescer muito porque ainda não ocupa nem um terço dos hectares da soja.

Ramiro destaca ainda o caráter de sustentabilidade da produção do etanol de milho, devido ao uso de fontes renováveis na indústria (braquiária, cavaco de eucalipto, bagaço de cana), diferentemente do etanol americano, que usa carvão e gás. “No futuro, podemos ter acesso a mercados mais exigentes de combustíveis renováveis.”

Sérgio Alex Fracasso, zootecnista e gestor de DDG da usina flex Libra, de São José do Rio Claro, também aposta na agregação de valor do milho. A empresa de 25 anos iniciou há quatro a moagem do grão em escala comercial para fazer etanol e seus coprodutos. “Começamos com 20 toneladas de milho por dia e hoje processamos 1.000 toneladas. E nosso DDG foi o primeiro a ser registrado no Ministério da Agricultura.”

A Libra produz dois tipos da proteína animal: o DDG, que é o produto seco e mais valorizado, e o DWG (grão de destilaria úmido), que tem de ser consumido no máximo em seis dias. A proteína é testada diretamente nos 1.800 bovinos da empresa. “Conseguimos um aumento de produtividade de 20%. O DDG é uma revolução para Mato Grosso porque o Estado não tem população grande. O que tem aqui é gado. São 30 milhões de cabeças, dez para cada habitante.”

Emilio Cesar, da Ideal Agro (Foto: Rogerio Albuquerque)

 

Leandro Fernandes, da Ideal Agro (Foto: Rogerio Albuquerque)

 

A receita vinda do DDG e do DWG representa de 20% a 25% do lucro líquido da Libra, que tem duas unidades de produção 24 horas na mesma área: a de cana produz combustível de abril a outubro e a de milho tem processamento o ano todo. Segundo Sérgio, a vantagem do milho, comprado de produtores da região, é que vira etanol em três dias e dá liquidez imediata para a empresa. Além da usina, a área de 18 mil hectares da Libra tem 10 mil hectares de cana e integração pecuária-floresta.

Jorge dos Santos, diretor executivo do Sindalcool (Sindicato das Indústrias Sucroalcooleiras) de Mato Grosso, afirma que em breve a produção de etanol de milho deve se equiparar à da cana no Estado. “As novas usinas representam um novo mercado para o produtor safrinha e ainda agregam valor com o DDG, já que para o pecuarista sai mais barato transportar quilos de DDG do que toneladas de milho.” Para ele, o produtor está “sorrindo de orelha a orelha” devido à garantia de compra, contratos antecipados e preços competitivos. “Se pagar R$ 16 pela saca, já cobre o custo. Hoje, as usinas estão pagando até R$ 23.”

Amarildo Cremote, vice-presidente da Acrimat (Associação dos Criadores de Mato Grosso) e produtor de gado na região de Cáceres, diz que mantém contrato anual com usinas da região para a compra de 3 mil a 4 mil toneladas de DDG por ano, usadas no semiconfinamento de 10 mil animais. “Sai mais barato que comprar o milho. Antes, usava de 50% a 60% do grão na ração do gado”, diz Amarildo.

Marcos Aurélio, produtor em Nova Mutum (Foto: Rogerio Albuquerque)

 

MUDANÇA NA TRIBUTAÇÃO

Uma lei que está tramitando na Assembleia Legislativa de Mato Grosso tirou o sono de produtores, empresários e outros envolvidos na cadeia do etanol de milho no início de julho.

Ao ser lançado, o projeto foi visto como uma minirreforma tributária que mudaria os incentivos fiscais e elevaria os impostos nas indústrias, podendo cancelar investimentos no Estado.
Ramiro Azambuja, da O+, disse que houve inicialmente uma leitura equivocada da lei. “Na verdade, o texto vai dar a segurança jurídica que o setor precisa para investir.”

Ricardo Tomczyk, da Unem, diz que não havia consenso sobre a lei, que “estava sendo mudada a cada hora”, mas o setor estava negociando com o governo para não haver aumento de tributação.
Source: Rural

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