Skip to main content

 (Foto: Edilson Dantas/ Agência O Globo)

 

Aos 68 anos, o cientista Carlos Nobre, uma das maiores autoridades do mundo em mudanças climáticas, que há décadas chama a atenção sobre o avanço do desmatamento da Amazônia, agora quer colocar em prática um projeto de incentivo à industrialização sustentável dos produtos da biodiversidade da floresta. Ele cita como exemplo o açaí, que é a matéria-prima de mais de 50 produtos, como alimentos nutracêuticos (funcionais), bebidas e cosméticos. É um produto que movimenta no mundo US$ 15 bilhões e uma fração modesta, de apenas US$ 1 bilhão, fica na Amazônia

Membro da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, movimento que reúne as principais entidades do agronegócio e as organizações de defesa do meio ambiente, ele comenta a polêmica em torno dos números de desmatamento do Inpe, contestados pelo presidente, e a compra pelo governo de imagens de satélites do setor privado. Atitudes como propor mudanças no Código Florestal e ser contra os pactos que visam à produção sustentável “são como dar um tiro no pé”, diz ele.

GR – O senhor é pessimista em relação à política ambiental do atual governo?
Carlos Nobre – Espero que o governo mude suas políticas. Por exemplo, voltar a liberar os recursos de doações ao Fundo Amazônia. Como cientista, acho que podemos encontrar soluções. Eu mesmo estou envolvido num projeto para mostrar que o maior potencial da Amazônia é a sua biodiversidade. Um bom exemplo é o açaí. Existem mais de 50 produtos que foram desenvolvidos a partir do açaí, como alimentos nutracêuticos (funcionais), bebidas e cosméticos. A maior parte dessa industrialização para agregação de valor foi feita nos EUA. É um produto que movimenta no mundo US$ 15 bilhões e uma fração modesta, de apenas US$ 1 bilhão, fica na Amazônia. O agronegócio tem de enxergar que esse é um caminho a ser explorado no mercado mundial, não só exportar commodities como soja e carne.

GR – Então o caminho é explorar a biodiversidade?
Nobre – É preciso ter uma autoridade amazônica para a biodiversidade, por exemplo, como um departamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para financiar empresário inovador que queira investir na economia da biodiversidade. No meu projeto, denominado Amazônia 4.0 de modelo sustentável, com uso das modernas tecnologias, em 2020 iremos começar a discutir com a cadeia do cupuaçu e do cacau para a produção de chocolate e outros produtos. Depois será a vez da cadeia da castanha e do setor de recursos genéticos.

GR – Como o senhor vê algumas iniciativas que propõem mudanças no Código Florestal?
Nobre – Felizmente, o setor moderno do agronegócio tem se posicionado contra essas iniciativas, como a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) e o Instituto Brasileiro de Florestas (IBF). Esses setores já estão convencidos de que o Brasil vem buscando encontrar o ponto de equilíbrio entre produção agropecuária e proteção ambiental, que ampliou os mercados brasileiros e se tornou uma marca de enorme valor econômico. O agronegócio moderno sabe que o mosaico floresta e agricultura é o mais produtivo e rentável. O agronegócio moderno se posicionou de que a mudança no Código Florestal seria um tiro no pé.

GR – E os posicionamentos contrários aos pactos, como a Moratória da Soja? 
Nobre – Acho que é uma atitude corporativa que também representa um tiro no pé. Se o Brasil não se alinhar aos grandes compradores, vai virar um fornecedor marginal. Os grandes mercados estão demandando a especificação da origem. Não dá para rejeitar os movimentos que vão em direção à agricultura sustentável e com maior produtividade.

GR – Como o senhor vê o fato de o presidente Jair Bolsonaro contestar os dados do Inpe sobre o desmatamento?
Nobre – Não tem nenhum sentido, porque o método utilizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais de monitoramento da vegetação existe há muitos anos. O que há é uma confusão de interpretação. Os dados do Sistema de Detecção do Desmatamento na Amazônia Legal em Tempo Real (Deter) seguem diariamente para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) desde 2004 e têm sido extremamente úteis para todas as ações de fiscalização. Já o Programa de Cálculo do Desflorestamento da Amazônia (Prodes), que existe há 30 anos, mede a área total desmatada e tem margem de erro de 5% a 6%, uma dos menores que existem no mundo. O que o Deter mostrou nos últimos 12 anos foi uma tendência de alta no desmatamento. O Prodes deve confirmar o crescimento, como mostram vários outros sistemas.

GR – Qual sua opinião sobre a contratação pelo governo de um serviço privado que tem imagens de maior resolução?
Nobre – É preciso esclarecer que não é uma coisa automática, que aumentando a resolução se vê tudo. Não é simples. É um trabalho muito criterioso. Os maiores especialistas em treinamento de algoritmos de recepção e processamento de dados de satélites para os nossos biomas estão no Brasil. Todo o esforço de tornar esses sistemas mais confiáveis vai muito além de somente buscar maior resolução espacial e temporal, porque a quantidade de dados aumenta tanto que o processamento totalmente automático virá embutido com uma margem de erro muito grande. Muitos dados de altíssima resolução são gratuitos: satélites norte-americanos, europeus, sino-brasileiros e indianos. Por isso não sei se vale a pena pagar por dados quando a maioria é gratuita.

GR – Qual a causa do aumento do desmatamento?
Nobre – O que temos na Amazônia ainda é uma tradição de muita influência do crime organizado, ligado à extração ilegal de madeira, à grilagem de terras públicas, e uma pecuária e produção agrícola de baixa produtividade. A ilegalidade diminuiu muito de 2005 a 2014, por causa da força da fiscalização, quando foram desbaratadas inúmeras quadrilhas de roubo de madeira e de grilagem de terras, que estavam associadas a quadrilhas internacionais do narcotráfico e do contrabando de armas. Houve uma ação muito consistente e contínua. Com a recessão econômica, a partir de 2015, os recursos e as ações de fiscalização escassearam. Há um crescente discurso político de desmatar para expandir a fronteira agrícola, que incentiva o desmatamento ilegal.

GR – Qual sua avaliação sobre a política ambiental do governo?
Nobre – O Brasil se arrisca a perder credibilidade internacional. O Brasil, desde a Rio 92, ganhou uma enorme credibilidade como um país preocupado com o futuro da humanidade. Liderou negociações sobre mudanças climáticas e sobre a questão da biodiversidade. A aura que o Brasil construiu como país com a maior biodiversidade e maior floresta tropical do mundo é muito benéfica. O mundo olhava o Brasil como líder. A percepção mundial hoje é que o Brasil está indo numa direção oposta da construída em quase 30 anos. Nós não podemos retroceder, pois terá impacto econômico, com riscos inclusive para as exportações brasileiras.

GR – A postura do governo também afeta as negociações sobre o mercado de carbono?
Nobre – Acho importante o Brasil retomar as discussões sobre o assunto. É verdade que o preço da tonelada de carbono nunca atingiu um valor que realmente recompense o serviço ecossistêmico. A solução natural neste século é ter uma área enorme em restauração florestal para retirar gás carbônico da atmosfera. A diplomacia brasileira tem de continuar essa luta, que não é fácil, de valorizar os serviços ecossistêmicos. Muitos cálculos indicam que a tonelada de carbono pode chegar a US$ 30 ou mais. Hoje, está muito longe, pois no mercado voluntário a tonelada de carbono não passa de US$ 5. O agronegócio pode ser importante nessa negociação, porque a reserva legal tem floresta.
Source: Rural

Leave a Reply