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Bento Mineiro exibe os queijos que produz na Fazenda Sant’Anna, em Pardinho (SP) (Foto: Rogerio Albuquerque/Ed. Globo)

 

Na cave subterrânea e climatizada onde os queijos são maturados, não é possível perceber que estamos em um dos lugares mais aprazíveis de São Paulo. Lá fora, entre encostas, morros e montanhas, o rebanho leiteiro pasta despreocupadamente. Nas Cuestas de Botucatu, região de transição de relevo localizada na porção central do Estado, vêm sendo produzidos queijos de leite cru que unem o artesanal com modernas técnicas laboratoriais. Chamam a atenção pela excelência.

A Pardinho Artesanal, empresa que leva o nome da cidade paulista, é uma novata diante da rica história da queijaria do Brasil, mas simboliza o momento que a atividade atravessa.

Como a qualidade do queijo depende muito do sistema de criação do animal – no caso, a fêmea –, a decantada biodiversidade brasileira não poderia ser melhor para o produto. Os queijeiros do país estão se aprimorando no caminho da diversidade e em busca de identidade para um queijo tipicamente brasileiro.

Hoje, além de regiões tradicionais como a Serra da Canastra e o Serro, em Minas Gerais, existem rotas de queijos em diferentes Estados, como São Paulo, Rio Grande do Sul, Ilha de Marajó, no Pará, e Pernambuco. Além do produzido com leite de vaca, nos grandes centros é possível encontrar queijos de búfalas, cabras e ovelhas. Produtos frescos, meia cura, de maturações variadas, de massa mole ou dura, com a casca lavada ou não.

O proprietário do queijo Pardinho, Bento Mineiro, diz que começou a produzir há cerca de dez anos. A experiência surgiu porque a família, tradicional criadora de gado, é fascinada por gastronomia. Como o gado não era problema e como de gastronomia quem entende é a França, Bento foi à Europa buscar conhecimento queijeiro. “Todas as nossas receitas têm inspiração francesa, mas foram desenvolvidas para a nossa realidade. Fazer queijo é um grande jogo entre textura e gosto. Não é fácil obter uma complexidade de gosto e aromas com uma textura agradável”, diz.

A gerente técnica da Pardinho, Vanessa Alcoléa, vistoria os queijos da cava subterrânea (Foto: Rogerio Albuquerque/Ed. Globo)

 

O primeiro teste foi feito em 2014. Hoje, na Fazenda Sant’Anna, a Pardinho Artesanal produz três tipos de queijo, um com mofo azul e todos feitos com leite cru, como requer a tradição do queijo artesanal. “Produtos de leite cru tendem a ser mais complexos do que os industrializados. Como na indústria o leite é pasteurizado, é difícil reproduzir em escala industrial a gama de microrganismos que existe no leite”, diz a gerente técnica da Pardinho, Vanessa Alcoléa. 

Os tanques de cobre importados da França ajudam a manter o calor do leite enquanto é remexido. De um modo geral, a receita do queijo artesanal é simples. Depois da ordenha, o leite é coagulado e a massa é mexida até atingir o ponto de ser quebrada para obter o “grão” desejado. Esses grãos são prensados para liberarem o soro, que será descartado e muito provavelmente servido a porcos e outros animais. Então enforma-se a massa. Aí basta colocar sal e deixar descansar, sempre virando o queijo, para que ele não fique deformado. O descanso pode variar ao longo de dias, meses e até mesmo durante anos.

Na queijaria de Pardinho, os queijos descansam numa cave subterrânea climatizada. “Não existe precedente de queijaria com SIF (Sistema de Inspeção Federal) que trabalhe com leite cru em cave”, diz Bento. Isso porque o rigor no processo produtivo da queijaria é assegurado pelo Ministério da Agricultura.

O mercado brasileiro do queijo maturado de leite cru ainda está se inventando. Bento Mineiro admite que está descobrindo o tamanho desse mercado.

Fernando Oliveira na loja A Queijaria, em São Paulo (Foto: Caio Ciuccio/Ed. Globo)

 

Quando se fala em queijo, é impossível não falar da Canastra e do educador Fernando Oliveira. Há cerca de 12 anos, esse sociólogo de 38 anos decidiu voltar à Serra da Canastra para comer o queijo que comia na sua infância, quando costumava visitar a região com seu avô. Como não conseguia encontrar o que queria, Fernando  decidiu inquirir os produtores. Conheceu José Mário, um dos mais antigos produtores da Canastra, que disse: “Vou te mostrar o queijo que eu como e não o que eu vendo”.

A busca parecia ter terminado, mas, a partir dali, Fernando passou a visitar outros produtores e regiões, estimulando o retorno à maturação do queijo de leite cru. “Eles vendiam o queijo fresco a R$ 7 o quilo e eu passei a pagar R$ 13. Depois, conheci outros produtores em todo o Brasil. Quando tinha uma rede de 40 queijeiros, decidi abrir uma loja.”

Assim nasceu A Queijaria, que funciona num sobrado do bairro da Vila Madalena, em São Paulo. O endereço simboliza toda a diversidade do queijo brasileiro. Além de produtos de vários cantos do país, oferece cursos para iniciantes. Fernando abriu três unidades em regiões nobres da capital paulista neste ano e pretende abrir outra no bairro do Grajaú, no ano que vem.

Fora o garimpo e a venda do queijo, Fernando se esforça para dar visibilidade aos produtores. É comum ele oferecer determinados produtos apenas por algum tempo para logo depois dar lugar a novos queijeiros. Ele acredita que o momento atual é de dúvida se o mercado vai conseguir absorver mais gente ou se vai fechar em alguns. “Quanto mais falarmos em queijo, melhor. O  brasileiro está aprendendo que temos bons queijos também no Brasil.”

 

RETOMADA EM ALTO ESTILO

Serra da Canastra se tornou sinônimo de queijo, mas a história poderia ser outra sem a resiliência de um grupo de produtores

É consenso que em Minas Gerais o mercado do queijo já está alavancado. Hoje, entre montanhas com florestas preservadas, pastos verdejantes, cachoeiras e nascentes de rios como o mitológico São Francisco, a Canastra é uma verdadeira fábrica de queijo artesanal. Produz, em média, 480 toneladas todo mês. O queijo criou em cidades como São Roque de Minas e Medeiros uma situação de pleno emprego, onde os produtores dizem ser difícil encontrar mão de obra disponível para o trabalho.

Marisa de Lima Carvalho, na Fazenda Boa Vista, em Tapiraí (MG) (Foto: Fernando Martinho/Ed. Globo)

 

A Canastra já ensaiava uma retomada no momento em que o paulistano Fernando Oliveira chegou à região. Há cerca de 15 anos, com a grande oferta e produtores que consideravam o queijo apenas um complemento orçamentário, a atividade era dominada por atravessadores que pouco pagavam pelo queijo fresco. A sanidade também não era a regra na produção.

Inconformados com a situação e com a legislação para produtos artesanais, um grupo de produtores, formado por João Leite, José Mário e Luciano Machado, criou uma associação para desenvolver a atividade e agregar valor ao produto.

A Associação dos Produtores de Queijo Canastra (Aprocan) foi oficializada em 2005 e hoje conta com 56 associados. O número não é grande diante dos cerca de 800 produtores da serra, mas representa o que a região tem de melhor.

Em 2013, a Aprocan fez uma parceria com o Sebrae-MG para fortalecer a cadeia em um trabalho de valorização da história e abertura de novos mercados. “O principal problema era o posicionamento”, lembra o analista técnico Ricardo Boscaro Castro, do Sebrae. “Dentro da porteira, já havia um trabalho sério, mas os produtores vendiam commodity e precisavam vender, além da qualidade, suas histórias e valorizar a origem.”

João Leite e o Canastra Real em São Roque de Minas (MG) (Foto: Fernando Martinho/Ed. Globo)

 

Um queijo maturado da Canastra com a etiqueta de caseína (Foto: Fernando Martinho/Ed. Globo)

 

No ano passado, foi adotado um selo que garante a rastreabilidade e impede a falsificação de aproveitadores que abusam da fama do queijo da Canastra. A etiqueta de caseína, importada da França, é feita a partir da proteína do leite e impressa diretamente no queijo em carvão vegetal, sem afetar o gosto ou a qualidade do produto.

“O selo vai ser bacana porque tem muito queijo pirata. Os consumidores podem saber que estão comprando um produto legítimo”, diz Marisa de Lima Carvalho, da Fazenda Estrela da Boa Vista, de Tapiraí (MG). Por enquanto, além dela, apenas outros 22 produtores utilizam o selo.

A queijaria da Marisa, como é conhecida, tem uma produção de cerca de 22 queijos por dia. Sempre produziu o queijo maturado. “Se eu aumentar a quantidade, cai a qualidade”, diz. No ano passado, Marisa ganhou o Prêmio Queijo Brasil pela boa qualidade do seu produto.

A parceria da Aprocan com o Sebrae-MG foi tão bem-sucedida que estimulou outros produtores a adotar normas e padrões de rastreabilidade, com investimento em bem-estar do rebanho, no curral, nas boas práticas e nas queijarias, além de se estender para outra importante região produtiva do Estado, o Serro.

BONITO E COMPLEXO

Um dos maiores símbolos da queijaria nacional, o Canastra Real quase desapareceu. O produto, de cerca de 5 quilos e normalmente vendido em cunhas, ainda era fabricado há cerca de 50 anos, mas, com a demanda por queijo fresco e de baixo custo, os produtores locais foram deixando de lado a peça, criada originalmente para presentear a nobreza durante o Império e alimentar a família real.

Durante a retomada, nos anos 2000, o produtor e presidente da Associação de Produtores de Queijo Canastra, João Leite, um dos principais motivadores do queijo na serra, ganhou um importante presente do veterano produtor José Mário: uma forma de madeira usada por sua família. Com ela, a produção do Canastra Real foi restituída. Zé Mário também deu uma mesa usada para a fabricação de queijo a Fernando Oliveira para A Queijaria.

Na região do Serro, os produtores também criaram uma maneira de reforçar a identidade local. Há pouco mais de um ano, foi realizado um concurso para nomear um queijo grande. O nome escolhido é cheio de história: Comarca do Serro.

Fernando Oliveira explica que a produção do queijo grande tem dois atrativos. O marketing é importante, já que o produto impressiona, por ser vistoso e chamativo. Mas a questão técnica se impõe. Por isso não são poucos os produtores apaixonados por queijo que se aventuram nesse tipo de produção.

“Quanto mais tempo de maturação, mais complexidade de aroma, textura e sabor”, explica o especialista.

INOVAÇÃO NA TERRA COLONIAL 

No Serro (MG), uma região com imenso potencial turístico, produtores se reinventam para não perder o fio da tradição

Regiões serranas como as Cuestas paulistas e a Serra da Canastra tendem a favorecer o terroir do queijo. A realidade é a mesma do Serro, uma das mais antigas cidades mineiras. No tempo da colônia, o Serro foi a maior comarca de Minas Gerais. Ainda hoje, a cidade ostenta um imponente casario colonial que nada deixa a desejar a cidades como Diamantina, Ouro Preto e Mariana.

Localizado na Serra do Espinhaço, norte de Belo Horizonte, o Serro nasceu em função dos minérios. Com o declínio da mineração, as fazendas de gado se especializaram numa produção queijeira que valeu à cidade a fama de “terra do queijo”.

Túlio Madureira e os queijos que produz na região do Serro (MG) (Foto: Fernando Martinho)

 

Num primeiro momento, o produto era um alimento destinado à nobreza colonial. O queijo era transportado por tropeiros nas bruacas, bolsas de couro em forma de baú dispostas nos lombos das mulas. Na estrada, o queijo amadurecia. Mas, com a chegada dos caminhões, apareceu a figura do atravessador, que precisava vender muito e mais rápido. Foi assim que começou o império do queijo fresco e do meia cura.

Nos anos 2000, depois de um caso de doença associado ao consumo de queijo de leite cru que valeu uma proibição da venda em Belo Horizonte, os produtores se mobilizaram para melhorar as práticas da cadeia. A virada veio em 2002, quando o queijo do Serro passou a ser considerado patrimônio cultural imaterial de Minas Gerais.

Depois disso, a produção dos 11 municípios que formam a região só se desenvolveu. “O queijo da microrregião do Serro está recebendo mais atenção, está mais divulgado e tem ganhado prêmios”, diz o presidente da Associação dos Produtores Artesanais de Queijos do Serro, José Ricardo Ozólio.

Deobaldino Marques de Pinho em sua fazenda “tropeira”, em Sabinópolis (MG): tradição de mãe para filho (Foto: Fernando Martinho)

 

Hoje, as fazendas históricas tricentenárias preservam o sabor e a fama do queijo mineiro, mas os produtores também procuram reinventar a tradição. Túlio Madureira, de 33 anos, da Fazenda Pedra do Queijo, no Serro, brinca dizendo que a competição criou na região uma “difusão por inveja”. “Estamos resgatando uma coisa por aqui, mas ainda estamos longe de saber como era  nosso queijo no passado. Há muito a ser descoberto. Por isso produzimos queijo de tudo quanto é tipo: mole, macio, de casca lavada…”

Como muitos queijeiros locais, Deobaldino Marques de Pinho, de 62 anos, aprendeu a fazer queijo com a mãe. “No período das tropas, havia a necessidade de um queijo de excelência para aguentar o transporte. Depois, com o caminhão, aumentou a oferta, mas diminuiu a qualidade”, diz, na queijaria da Fazenda São José do Turvo Grande, uma propriedade localizada em Sabinópolis (MG) que até hoje mantém o estilo tropeiro.

O produtor sente-se feliz com o atual momento do mercado, em que o consumidor está ditando as regras e provocando o produtor. “Agora está todo mundo fazendo queijo maturado. Nós temos de mostrar que é possível fazer um alimento de qualidade sem tirar o pé desse quintal nosso. O grande desafio é evoluir tecnológica e sanitariamente sem perder a tradição.” 

BRASIL PODE VIRAR POTÊNCIA

Odeclínio do queijo maturado de leite cru começou quando os caminhões tomaram o lugar das tropas de mulas no transporte de mercadorias. A velocidade das rodas que substituíram o trote dos animais  impedia o queijo de se desenvolver por longo tempo. Aos poucos, o queijo fresco foi se tornando sinônimo de queijo bom e saudável.

Em 1950 veio outro grande golpe, quando foi sancionada uma lei que dispunha sobre a inspeção industrial e sanitária dos produtos de origem animal. A partir dela, produtos de origem animal ficaram sujeitos à fiscalização sob o ponto de vista industrial. Na prática, a lei beneficiou as indústrias e matou os produtos alimentícios artesanais. Os produtores só podiam vender para mercados muito próximos da produção. Cruzar as divisas estaduais, nem pensar.

Muitos queijeiros abandonaram a atividade. Os que continuaram tornaram-se praticamente clandestinos. Como o grosso era produzido pela indústria, o queijo de leite cru passou a ser associado à precariedade. Ainda que reconheçam que havia exageros no quesito sanitário, os produtores brincam: “Nunca vimos ninguém que tenha morrido de queijo”.

No fim dos anos 1990, a partir de Minas Gerais, a situação começou a mudar. O Estado adotou uma política de valorização da produção agroartesanal que beneficiou o queijo de leite cru. Em 2012, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) registrou a Indicação de Procedência Canastra para o queijo da Serra. A partir daí, a produção da região voltou a chamar a atenção da mídia.

Em 2017, durante o festival Rock in Rio, a chef gaúcha Roberta Sudbrack teve produtos apreendidos pela Vigilância Sanitária por não ter autorização para comercializá-los no Estado do Rio de Janeiro. O episódio causou revolta e indignação, até que, no ano passado, o presidente Michel Temer sancionou nova lei que altera a de 1950, dispondo também sobre a fiscalização de produtos alimentícios de origem animal produzidos de forma artesanal e autorizando a comercialização interestadual. Os produtos devem passar a ser identificados com o chamado Selo Arte.

Por isso, produtores artesanais acreditam que o mercado vai bombar nos próximos anos. “Países como França e Portugal, por exemplo, fizeram muita concessão. Nós trabalhamos para segurar alguns processos que desapareceram nos outros países. Brigamos por madeira e por maturações mais rústicas. O Brasil pode ser o único país do mundo que conseguiu ter uma lei adequada para produtos artesanais sem matriz industrial. O Brasil vai se tornar a pátria do queijo. Os estrangeiros estão de olho no mercado brasileiro”, diz o educador Fernando Oliveira.

* Os jornalistas viajaram a Minas Gerais a convite do Sebrae-MG

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Source: Rural

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