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Para o escritor, não há nada mais bonito do que uma saíra-sete-cores (Foto: Renato Augusto Martins/Wikimedia Commons)

 

Entre o campo e a cidade, minha vida é um pêndulo. Nasci em São Paulo, capital, mas o encantamento de minha infância ocorreu em Jundiaí (SP), quando residi alguns meses em um sítio que meu pai, nascido em fazenda, comprou só para acalmar sua saudade do campo. 

Não quero parecer saudosista, mas não esqueci até hoje nehuma das emoções daquele tempo. Embora hoje eu seja um defensor intransigente da liberdade dos animais silvestres, não consigo esquecer o entusiasmo infantil que me causava o ruído da queda da arapuca, desarmada pela pata de um pássaro imprudente. E aquela saíra do menino de um sítio vizinho? Quando a vi, agitada, no viveiro, quase perdi o fôlego. Foi o máximo! Naquele momento, surpreso e emocionado, convenci-me de que não poderia haver no mundo nada, absolutamente nada, mais bonito que uma saíra-sete-cores.  

Mas o tempo passou. Para ganhar a vida, acabei preso na arapuca de concreto da capital, longe de verdes e de bichos, mergulhado somente em trabalho durante uns quinze anos. Ao fim desse período o pêndulo retomou seu curso, no sentido contrário. 

Comprei uma casa em Campos do Jordão (SP). Não chegou a ser um retorno ao sítio da infância, mas a Serra da Mantiqueira, com suas matas encantadas, permitiu-se retomar contato com a natureza, incluída a visão de serelepes escalando pinheiros.

Aos poucos, fui deixando várias atividades que me prendiam a São Paulo e passei a viver a maior parte do tempo na Mantiqueira. Um dia, olhando para o quintal através da janela, descobri algo mais bonito que a saíra da minha meninice. Era também uma saíra-sete-cores, mas desta vez solta, pulando livre, feliz, nos galhos de uma pereira carregada de frutos. 

Em 1980 nasceu o Chiqunho. Sua mãe, uma cadela do vizinho, resolvera dar cria em minha casa, em Campos. Adotei-o como meu cachorro. Foi uma novidade, pois há mais de vinte anos não convivia com animal doméstico. Não que não gostasse deles. Bem pelo contrário, quando menino costumava levar para nosso quintal urbano todos os bichos que encontrava ao alcance das mãos. Uma vez, em uma casa dotada de grande terreno no bairro de Perdizes, em São Paulo, reuni cachorro, pássaros, préas, coelhos, perus, patos e galinhas, saguis, tartarugas, peixinhos coloridos, papagaios mudos, e até um mutum visitante. Os bichos eram meus, mas quem arcava com o trabalho de cuidar deles era minha mãe…

Antônio F. Costella, escritor; é autor de mais de 20 livros publicados; foi professor universitário por quase 30 anos; foi também advogado e Procurador Municipal em São Paulo; é diretor do Museu de Xilogravura; atualmente dedica-se apenas a literatura (Foto: Divulgação)

Voltemos, porém, ao Chiquinho, pois ele haveria de mover novamente o pêndulo. Nossa convivência perdurou mais de quatorze anos. E nesse período, por sua inspiração, descobri maravilhas de natureza. Explico melhor. No início de 1989 fui dar aulas em uma faculdade de jornalismo no Porto, em Portugal. A conselho do veterinário, levei o Chiquinho, pois minha mulher também ia e, em nossa ausência, ele se recusava a comer. Depois de terminado o curso, seguimos de automóvel por Espanha, França, Itália e Grécia. A presença do viajante de quatro patas inspirou-me a escrever três livros que relatam esse itinerário: "Patas na Europa", "Patas 2 — A viagem Continua" e "Patas 3 — Ossos de Pizza". (Ainda virá um quarto e último, pois falta contar nossa viagem na Grécia). Escrevi-os sob visão de um cachorro, colocando o Chiquinho como narrador e, por isso, me vi obrigado a fazer muitas pesquisas a respeito do comportamento dos animais. Descobri, então, um mundo novo e fascinante, no qual estou mergulhado até hoje. Ainda agora acabo de lançar três novos livros — "Cacareco, o Vereador", "Dick, o Herói" e "Bucéfalo, o Grande" — que são, respectivamente, biografias documentadas de um rinoceronte, um cão e um cavalo. 

Ocorre que meus livros, desde o "Patas na Eurpa", conquistaram muito mais público do que os outros que eu havia escrito anteriormente e que versam sobre temas técnicos, especialmente de Comunicações. O êxito alcançado levou-me a atender muitíssimos convites para fazer palestras em escolas, bibliotecas e instituições de todo tipo, principalmente em São Paulo. As pesquisas para esses e para novos livros também passaram a reter-me mais e mais na capital, em consulta a coleções de jornais antigos e bibliotecas especializadas, mantendo-me afastado de Campos do Jordão. Em síntese, nos últimos anos o pêndulo refez mais uma vez o seu curso, agora em direção à cidade. 

Confesso que, aos 53 anos, já habituado com as idas e vindas do pêndulo, reassumi entusiasmadamente a cidade grande, mesmo porque São Paulo tem realmente muitos aspectos ótimos. O entusiasmo, porém, é tanto que me declaro embriagado com os variados aromas da poluição e tenho classificado os ruídos urbanos como música sugestiva e estimulante. Até quando? Não sei. Quem sabe a resposta é o pêndulo. 

Um, dentre esses três livros mais recentes, porém, tem me deixado com umas cismas. Refiro-me a "Bucéfalo, o grande". Nele, baseado no historiador Plutarco que viveu há dois mil anos, conto a história de Bucéfalo, o cavalo de Alexandre, o Grande, da Macedônia. Juntos, Bucéfalo e Alexandre conquistaram todas as terras habitadas desde a Grécia até as fronteiras da Índia. O livro relata a história comovente de uma grande amizade entre um cavalo e um homem. 

Pois bem. O curioso é que me deixei envolver de tal modo pela pesquisa e pelo tema que meu pensamento, ultimamente, tem se encaminhado para rincões estranhos. Outro dia, por exemplo, surpreendi-me acalentando a ideia de que — vejam só — arrumar um sítio e criar cavalos…

 *Crônica publicada na edição nº 142 da Revista Globo Rural, de agosto de 1997.

 Leia outras crônicas da Revista Globo Rural:
>> "Ter um sítio", crônica de Luiz Vilela
>> "Infância rural", crônica de Elias José
>> "Na barragem do tempo", crônica de Paulo Paiva Nogueira

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Source: Rural

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