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Antonio Augusto Santos, um dos representantes do movimento Slow Food no Brasil (Foto: Marcelo Curia/Ed. Globo)

Por que os agricultores orgânicos devem pagar uma taxa anual para colocar um selo que certifica sua produção como livre de veneno enquanto o produtor que usa agroquímicos não tem obrigação alguma? Essa é uma das perguntas do agricultor familiar Antonio Augusto Santos, um dos representantes do movimento Slow Food no Brasil, que defende o direito das pessoas de sentir prazer na alimentação, utilizando produtos artesanais de qualidade que são produzidos respeitando o meio ambiente, os agricultores e consumidores.

Santos, que cultiva várias frutas, legumes e verduras em sua propriedade de 3 hectares certificada há 25 anos como orgânica em Pescaria Grande (SC), foi um dos palestrantes da 3ª Conferência Internacional Agricultura e Alimentação em uma Sociedade Urbanizada, realizada na última semana em Porto Alegre, com 170 especialistas de 63 países, além de produtores, agrônomos, estudantes e outros integrantes da sociedade civil. O objetivo da conferência: discutir uma nova agenda agroalimentar que contemple a produção e consumo de alimentos  mais saudáveis.

Ativista da agroecologia e crítico do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), o paulista de 53 anos integra a rota dos butiazais no sul do país. Nessa entrevista em Porto Alegre, ele diz que é preciso mudar o sistema de produção para preservar o planeta, que os programas de incentivo à agricultura familiar estão morrendo  e que a agroecologia tem capacidade de alimentar toda a população brasileira, desde que haja planejamento.

GLOBO RURAL – O senhor nasceu e morou na região metropolitana de São Paulo por quase 30 anos e hoje é um agricultor familiar e representante do movimento internacional Slow Food Brasil. Como foi essa transição da cidade para o campo?

ANTONIO AUGUSTO SANTOS – Em São Paulo, eu e minha mãe, Natalícia, faziamos há 40 anos o que a gente chama hoje de agricultura urbana. Em lotes baldios perto de casa,  com autorização dos donos, a gente plantava banana, milho, inhame, batata-doce, verdura e outros vegetais e criava pequenos animais. Parte a gente comia e outra parte vendia para os vizinhos. Aquilo despertou em mim esse contato com a terra, animais, plantas. Depois, fui trabalhar na indústria metalúrgica. Anos depois, vim morar no Rio Grande do Sul e conheci um pessoal que trabalhava com agricultura natural, sob os princípios do japonês Mokiti Okada, respeitando o solo, o meio ambiente e plantando e colhendo com sentimento. Me encantei com aquilo, conheci o butiá e fiz a transição, voltando a trabalhar como agricultor nos moldes que minha mãe tinha ensinado, sem usar veneno e sem queimadas.

GLOBO RURAL – O que o senhor planta hoje?

SANTOS – Agroecologia não é monocultura, então eu planto um mix de produtos, como feijão, melancia, amendoim, tomate, abacaxi, beringela, pimentão, batatas, verduras e legumes em geral. Planto primeiro para consumo, mas também para levar para a merenda escolar, via cooperativas, e, o melhor, para venda direta nas feiras e nas casas de clientes. É nesse contato direto que você fala sobre a origem do alimento, a história, ensina a fazer novas receitas e comer outros produtos da terra, como o ora-pro-nobis, um tipo de bife vegetal que tem mais de 17% de proteína.

O movimento nasceu na Itália, em Turim, na década de 80, quando alguns jovens barraram a instalação de uma unidade do McDonalds na cidade. Eles diziam que queriam comer a comida local, sem essa correria do fast food. “Aqui é slow (lento) food”

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GLOBO RURAL – Como o senhor se tornou representante do Slow Food no Brasil?

SANTOS – Esse movimento apareceu na minha vida em um encontro sobre economia solidária em Tubarão (SC), quando a coordenadora me disse que estava tentando incluir o butiá no Slow Food. Eu nem sabia o que era isso. Aprendi que o movimento nasceu na Itália, em Turim, na década de 80, quando alguns jovens barraram a instalação de uma unidade do McDonalds na cidade. Eles diziam que queriam comer a comida local, sem essa correria do fast food. “Aqui é slow (lento) food”, diziam. O movimento cresceu, se internacionalizou e se tornou sinônimo de comida local boa, limpa e justa. Em 2014, fui convidado para levar os produtos do butiá no encontro do movimento na Itália. Levei a geléia oficialmente e, na mala, algumas unidades de licor, que vendi a 10 euros cada uma. Uma fortuna. Usei toda a renda para comprar sementes.

GLOBO RURAL – Como se formou a rota do butiazais?

SANTOS – A rota do butiá, que tem turismo e gastronomia, é um trabalho da Embrapa Pelotas para juntar todos que trabalham no extrativismo do butiá, visando estimular a conservação e uso sustentável dos butiás na região sul do país e também na Argentina e Uruguai. O butiá é uma palmeira que existe no sul do Brasil, Uruguai e Argentina. Com seus coquinhos de cor alaranjada produzimos geleias, licores, cachaças e vinagres. A polpa também pode ser usada para fazer inúmeros pratos culinários doces e salgados. Da semente, pode se extrair óleo para uso cosmético e das folhas se faz artesanato.

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GLOBO RURAL – O butiá integra o movimento Slow Food?

SANTOS – Sim. O fruto foi integrado à Arca do Gosto [catálogo mundial que identifica, localiza, descreve e divulga sabores quase esquecidos de produtos ameaçados de extinção] do Slow Food. Eu trabalho com butiá no sentido de fomentar a produção, de fazer a venda, de melhorar a qualidade, aumentar o custo. Quando comecei, nós vendíamos a polpa a R$ 5. Hoje, já vendemos a R$ 12. Neste ano, em 16 famílias, fizemos uma venda para São Paulo de uma tonelada de butiá a R$ 16 reais o quilo da polpa. Mas o resultado não foi bom: os impostos consumiram quase R$ 4. Fomos taxados em dois Estados. É um absurdo o produto do extrativismo não ter nenhuma isenção. Tem mais gente de lá querendo o butiá, como o chef Alex Atala, mas para nós ficou a pergunta: será que queremos nosso produto vendido em toneladas para mercados distantes ou queremos vender para a nossa localidade? A resposta é que queremos que o consumidor paulista ou de outros Estados consuma o butiá aqui, como um produto local. É um produto que tem origem, história e precisa ter um preço justo. Comida é um indicativo do local, da cultura e não podemos abrir mão disso.    

GLOBO RURAL – O senhor se tornou um ativista da agroecologia. Como é conciliar esse trabalho com o de produtor?

SANTOS – Lá em casa quem cuida mais do cultivo é a minha mulher e os filhos. Eu acabei de pagar minha propriedade e sei que poderia ganhar muito mais dinheiro se me dedicasse mais ao plantio, mas o que me satisfaz é incentivar mais pessoas a produzirem alimentos saudáveis sem veneno e sem agredir o meio ambiente, é ver quantas pessoas seguem a agroecologia e estão bem na atividade, formando filhos na faculdade, muitos deles agrônomos que seguem essa filosofia.

GLOBO RURAL – O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do governo federal, que compra alimentos produzidos pela agricultura familiar, com dispensa de licitação, e os destina às pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional e àquelas atendidas pela rede socioassistencial, ainda é uma boa alternativa para os agricultores familiares?

SANTOS – Era. Infelizmente, o PAA está morrendo no país todo. Nos últimos anos, houve um desmonte desse programa e também do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar). Os recursos que chegam para as cooperativas distribuírem aos produtores é cada vez menor. Nos bons anos, nossa cooperativa recebia R$ 1,5 milhão ou R$ 2 milhões de PAA. Como cada agricultor pegava R$ 8 mil, muitos eram atendidos. Hoje, o valor não chega a R$ 80 mil. É um desestímulo para o produtor e enfraquece o cooperativismo, que é a base de nossa produção orgânica.

GLOBO RURAL – O que é preciso, então, para incentivar a agricultura familiar no país: nova leis, isenção de impostos?

SANTOS – Uma forma seria ter um Suasa (Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária) regional que nos permitisse, por exemplo, vender uma linguiça feita em Pescaria Brava em outras cidades da nossa região. Seria interessante também que os gestores municipais focassem o uso de comida local na merenda escolar para ter uma alimentação mais saudável, com mais valor nutricional. Sabemos que é muito difícil a criação de leis para beneficiar o setor porque o lobby dos ruralistas em Brasília pelas grandes empresas que trabalham com alimentação no país é muito grande. O que eles fazem é nos marcar ao contrário. Por exemplo, agora está sendo lançado um pão ultraprocessado que eles rotulam como artesanal, se apropriando de uma marca nossa.

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GLOBO RURAL – Quantos produtores agroecológicos há na região?

SANTOS – Temos 4.200 famílias trabalhando nesse sistema no sul do país. Infelizmente, tem muita gente que se rotula como agroecológico que planta milho transgênico, tem trabalho infantil na propriedade, bate na mulher, desrespeita a filha, ou seja, não segue os valores éticos da agroecologia. Produzir o alimento é facil, mas na agroecologia é necessário ter cuidado com o lixo, com a água, com os plantios do vizinho, que pode ter transgênicos e contaminar a sua produção por derivação.

GLOBO RURAL – Sua propriedade é certificada como orgânica há 25 anos. Por que o senhor está defendendo agora a descertificação?

SANTOS – As empresas que trabalham com certificação por auditoria vivem desse valor. Não é o caso da nossa associação, a Ecovida, que me cobra R$ 300 por ano. Algumas chegam a cobrar R$ 5.000. A certificação, na verdade, está nos atrapalhando porque se eu tenho que marcar que meu produto é produzido sem veneno, por que o outro não precisa marcar que seu produto tem veneno? Então, descertifica e dá a opção para o consumidor. A fiscalização tem que ser do próprio consumidor. Muitos clientes que compram meu produto na feira ou nas casas aparecem lá na roça de vez em quando para conhecer a produção. Quando o alimento vai com selo, qual a garantia real de que é verdadeiramente natural? Já houve casos de associados nossos que fraudaram a produção, foram flagrados, perderam a certificação e foram expulsos da Ecovida.

GLOBO RURAL – Por que o alimento orgânico é tão mais caro?

SANTOS – É preciso entender se é tão mais caro. O atravessador coloca mais de 100% sobre o preço pago na roça. Nossa plantação não é em larga escala como as grandes empresas. Não usamos veneno para combate massivo às pragas e ervas daninhas e sim o “enxadox”, ou seja precisa de gente para esse trabalho manual, e existe uma escassez de mão-de-obra no campo. Tem ainda o custo ambiental: nossa produção não polui a água, o solo, o meio ambiente, as famílias que produzem ou os consumidores. Então, se fizer as contas, verá que o preço é justo. Não vendemos Coca-Cola, nosso produto tem origem, é diferenciado, nobre, local.

GLOBO RURAL – Sua produção tem financiamento? Vale a pena pegar empréstimos com juros baixos do Pronaf (Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar) para produzir mais?

SANTOS – Já peguei seis Pronafs, mas esse programa  é ilusório, é uma armadilha. A maioria dos agricultores familiares está endividada e não consegue sair desse ciclo de dívidas. O produtor pega o empréstimo de R$ 15 mil ou R$ 20 mil, não vem chuva, perde a produção e tem a conta para pagar. Acabei de pagar meu último financiamento e aprendi pela dor que não quero isso nunca mais. Quero fazer uma agrofloresta na minha propriedade. Preciso de recurso para cuidar do solo, para comprar mudas e planejar a produção. Não tenho esse dinheiro, então, estou plantando tomatinho cereja em uma área pequena para fazer capital e não depender de empréstimo. Tem que ser como a economia de casa: você não pode gastar mais do que ganha. Dinheiro de financiamento é muito baratinho, fácil, mas te amarra. O produtor familiar precisa ter disciplina para juntar capital e então investir.

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GLOBO RURAL – Se toda a população brasileira fosse conquistada pelos benefícios da agroecologia, haveria alimentos para todos?

SANTOS – Sim. No Brasil há um grande desperdício de alimentos. Teríamos muita dificuldade na produção de carnes e frutas orgânicas porque há poucos produtores, mas no restante a agroecologia seria capaz de alimentar toda a população. E teria um diferencial porque traríamos mais gente para essa produção limpa e aí o preço cairia.  O planejamento é a alma do negócio. Tendo o tamanho da demanda, o setor se prepararia para atender a todos. É um sonho nosso, uma utopia voltar aos hábitos de 60 anos atrás, quando a população era bem menor, mas só tinha a opção de se alimentar com produtos limpos, sem venenos. O fato é que se continuarmos no sistema de produção agrícola atual, em breve não teremos planeta. Não teremos comida com veneno nem sem veneno.

*Repórter viajou a convite da 3ª Conferência Internacional Agricultura e Alimentação em uma Sociedade Urbanizada

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Source: Rural

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