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As águas do Pantanal são o cenário desta crônica de Antonio Carlos Félix Nunes (Foto: Ernesto de Souza/Ed. Globo)

Estamos à sombra de uma figueira centenária, a 50 metros do Rio Aquidauana. O nosso entrevistado, um caboclo espigado chamado Ivo, 68 anos de idade, nascido e criado no Pantanal do Mato Grosso do Sul, espera oportunidade de contar um dos seus “causos”. E este momento chega quando um dourado salta sobre a água e nos chama a atenção pelo seu porte agigantado.

O velho pantaneiro começa com um longo preâmbulo, crivado de detalhes inúteis, pouco tendo a ver com o principal da história.

O ponto de partida é um fim de setembro de 1967, época em que uma seca, vinda de meses, preocupava a todos. O rio baixara bastante, os corixos haviam secado, a vegetação ficara amarelada, o gado emagrecera, os pássaros até ficaram tristes e cantavam menos.

— Mas a gente sabia que a chuva não ia demorar. E numa madrugada de lua crescente ela veio forte, anunciada por relâmpagos e trovões. Durou quatro dias e encharcou tudo.

Ivo recorre ao testemunho do filho caçula, que iria nascer 16 anos depois desse acontecimento. “Se alembra daquela chuvarada, Niquinho?” — Alembro sim, pai.

O jornalista e escritor Antonio Carlos Félix Nunes (Foto: Roberto Faustino/Ed. Globo)

— O rio transbordou, os corixos ficaram cheios — continua Ivo. E logo vi peixinhos boiando neles. Então peguei minha curimbeira (tarrafa de malha fina) e com uma só jogada apanhei um monte de tuviras. E mais uma vez apela para a memória do garoto: “Se alembra quantas, Niquinho?” — Vinte duas, pai.

Conta Ivo, a seguir, que armou dez linhadas (os anzóis de galho, como são chamados pela gente daquela região) numa curva do rio, próximo do lugar onde estávamos ouvindo sua história. Mas nenhum dos peixes que morderam a isca fora apanhado. Eles deveriam ser tão grandes, segundo Ivo, que arrebentaram a linha 0100 — outra vez o pescador pede confirmação ao filho. Este faz sinal positivo com a cabeça.

E prossegue Ivo: “Logo percebi que os pintados que subiam o rio eram sarados (sinônimo de forte, grande, na região pantaneira). Então, amarrei naquela ingazeira, que o senhor vê ali, um anzol de galho com linha 0120 — com a qual se segura um garrote enfurecido. No dia seguinte, a árvore estava toda enfiada na água. Pensei: para fazer isso, só mesmo um peixe muito grande. E desci com a canoa, preparado para lutar muito com ele”.

(Foto: Ed. Globo)

“Dito e feito. O pintadão correu pra cá, correu pra lá e nada de cansar. Quem estava cansado era eu. E enquanto eu dava um tempo para refazer as forças, o danado saiu do fundo do rio e saltou pra cima da canoa com a boca aberta. Me desviei e, com o impulso do seu corpo, a linha estourou e o bicho safou-se”.

Ivo faz uma pausa, buscando ao redor algo que possa ser comparado com o peixe perdido. Levanta-se do tronco serrado do ipê, de uns 50 centímetros de circunferência, e fala:

— Era um pintado como eu nunca tinha visto. Para o senhor ter uma ideia, a boca dele abarcava, folgado, este tronco de ipê. E, voltando-se para o guri: “Não era mesmo, Niquinho?”.

Desta vez, o garoto não confirma. Arranja uma desculpa: “Na hora que o pintado saltou sobre o senhor, eu não estava lá”.

* Publicado originalmente em maio de 1997, na edição 139 da revista Globo Rural.

Leia outras crônicas da Globo Rural:

>> "A festa do Brasilino", crônica de Odair Cordeiro (abril de 1997)
>> "O poeta do povo", crônica de Hélio Moreira da Silva (março de 1997)
>> "A cura", crônica de Jurandir Pereira (outubro de 1996)
 

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Source: Rural

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